O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações estudantis contra a ditadura, instalada no país quatro anos antes. O marco inicial das manifestações foi a morte do secundarista Edson Luís de Lima Souto, em 28 de março, com um tiro no peito, disparado por um soldado da PM, no Restaurante Central dos Estudantes, o Calabouço, no Rio de Janeiro. Três meses e uma série de protestos depois, no dia 26 de junho, uma multidão marchou pelas ruas centrais do Rio no ato que ficou conhecido como a Passeata dos Cem Mil, um dos mais emblemáticos eventos da história de resistência ao golpe militar.
Assim como no Rio de Janeiro e demais estados, na Paraíba os estudantes também foram à luta contra o regime. Em João Pessoa, jovens universitários e secundaristas se uniram num mesmo ideal e saíram às ruas para protestar contra a violência e o arbítrio da ditadura, por melhorias na educação e pelas liberdades democráticas.
Agamenon Travassos Sarinho era um desses jovens. Aos 15 anos, estudante do 3º ano do curso ginasial, do Colégio Estadual do Róger, Agá, como é mais conhecido, ensaiava na época os seus primeiros passos no movimento estudantil. Embora ainda garoto, participou da articulação dos atos, engrossou as passeatas que se espalhavam pelo centro da cidade e enfrentou a polícia nos muitos confrontos de rua.
Hoje, aos 68 anos, casado, três filhos, servidor público federal aposentado, desenhista e poeta, Agamenon continua na luta e é dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na Paraíba. Nesta entrevista, quando a Passeata dos Cem Mil completa 53 anos, ele fala sobre o clima político daquela época, as mobilizações estudantis, os enfrentamentos com a polícia e o legado da geração 68, que desponta mais uma vez nas ruas, agora nas manifestações populares contra o governo do neofascista Jair Bolsonaro.
Vamos começar pelo começo. Em 68, você tinha quantos anos? Onde estudava? Qual a série que cursava?
Tinha 15 anos, estudava no Colégio Estadual do Roger, que funcionava no velho mosteiro por trás da Igreja de São Francisco. Cursava o terceiro ano ginasial.
Como era o clima político da época?
Vivíamos sob o regime militar que ainda não havia exposto sua natureza fascista, mas num clima de proibições, de cassações de mandatos eletivos e perseguições. No estado, tínhamos o governador João Agripino, da Arena, o partido oficial de apoio à ditadura, um político conservador, porém não truculento.
O que lhe motivou a ingressar no movimento estudantil? Quais os ideais que lhe inspiraram a entrar na política estudantil?
Naquele tempo, havia, também, um clima de rebeldia pelo mundo. Era grande a oposição aos norte-americanos, devido à guerra do Vietnã. E a juventude não aceitava a falta de liberdade. Isso tudo exercia influência numa maior politização dos jovens. De família humilde, vindo do campo, eu sempre me sensibilizei com a luta por justiça social. Outro elemento importante é que eu gostava de ler muito. Foi, basicamente, a partir de um papo sobre leituras que entrei para o movimento estudantil. O então líder estudantil Antonio Soares, o Help, me viu comentando com um colega que havia lido “Crimes de Guerra no Vietnã”, de Bertrand Russel. Ele se aproximou, entrou na conversa e dali saí com mais livros para ler e o convite para fazer parte do Grêmio Estudantil Castro Alves (Greca), do colégio.
Nesse tempo, quais eram as escolas, os colégios e as faculdades mais mobilizadas, mais politizadas? O Estadual do Roger, o seu colégio, estava entre eles?
O movimento estudantil secundarista era muito mobilizado e numericamente maior que o universitário. O Lyceu e o Roger eram os mais combativos. O Estadual do ABC também se destacava. Quando partíamos em passeata do Roger sempre passávamos nos colégios Pio XII e Lins de Vasconcelos, que ficavam perto, para arrastar a turma. Às vezes, se juntavam alunos do Underwood, que ficava próximo ao Ponto de Cem Réis, palco de grandes manifestações. Na época a UFPB, ainda não tinha um campus e os universitários saíam em passeata de diversas faculdades, da FAFI (Faculdade de Filosofia), próxima ao Lyceu, da Medicina (Jaguaribe), da Engenharia (Centro). Os alunos de Serviço Social, também, participavam muito.
Quando você entrou no Róger já existia grêmio estudantil, né?
Sim. Já tinha o Grêmio Castro Alves. O presidente era Severino Gomes, outra importante liderança do colégio, ao lado de Help. Eu passei a cuidar do jornal mural, aproveitando meus dotes de desenhista. Mas, em 68, perdemos o Grêmio. Ia haver eleição, nossa candidata era Antônia Trigueiro (a Vanda, hoje residindo em Brasília). Nesse meio tempo, veio uma onda de repressão e Severino e Help foram “transferidos” do colégio. Na prática, expulsos. Isso desarticulou o movimento, apesar de termos muitos estudantes ainda engajados.
Você chegou a ser da direção do grêmio?
Não cheguei a ser formalmente da direção. Não deu tempo.
Você lembra bem como começou a série de manifestações de rua em João Pessoa em 68? Teve algum fato determinante?
Havia um clima de revolta em relação à reforma educacional da ditadura, os chamados acordos MEC-USAID, e também muita insatisfação com as condições de ensino. Mas o fator determinante da grande agitação de rua no primeiro semestre de 68 foi o assassinato do secundarista Edson Luis, no Restaurante Calabouço, no Rio, pela polícia militar carioca.
Contam que, em 68, o movimento estudantil unia secundaristas e universitários. Estavam todos juntos na mesma luta contra a ditadura, apesar das naturais diferenças de reivindicações de cada setor. Era assim mesmo, essa unidade toda?
Existia, sim, uma grande unidade. O movimento era muito politizado e a bandeira de liberdades democráticas, de abaixo a ditadura unificava, junto com a questão anti-imperialista. Era comum, na época, os estudantes botarem para correr os mórmons americanos que andavam em dupla pela cidade (risos).
Quais entidades comandavam o movimento?
A UNE (União Nacional dos Estudantes) era muito prestigiada, assim como a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas). O DCE (Diretório Central dos Estudantes) da UFPB e os diretórios acadêmicos também. O slogam “AUNE somos nós, nossa força e nossa voz” extrapolava o movimento estudantil. Tínhamos ainda a UPES (União Pessoense dos Estudantes Secundaristas), também posta na ilegalidade, que funcionava clandestinamente. Lembro de estarmos, certa vez, fazendo um pedágio em frente ao Lyceu para arrecadar fundos para o Congresso da UPES. Paramos um carro, um Galaxy, carro de luxo. A pessoa que estava no volante deu algo como 50 cruzeiros e disse: “Se fosse para a UNE, daria 100”. Olha como a UNE era prestigiada!
Quais eram as principais reivindicações, as principais bandeiras de luta, as principais palavras de ordem do movimento?
Havia as bandeiras contra os acordos MEC-USAID, por melhores condições de ensino. Os universitários também faziam reivindicações sobre assistência estudantil. Mas as palavras de ordem que mais pontificavam mesmo eram “abaixo a ditadura” e “abaixo o imperialismo”.
Nas manifestações de rua, houve fortes confrontos com a PM. A repressão era muito violenta? Muita pancadaria? Muito estudante detido, preso?
Nas primeiras manifestações houve tentativas de diálogo, mas, depois, por pressão dos militares, a repressão policial e a ação dos órgãos de segurança, como o DOPS, recrudesceram. Após a morte de Edson Luis, o Secretário de Segurança, cumprindo ordens do governador, emitiu um decreto proibindo manifestações estudantis “até ulterior deliberação” e as tropas ficaram de prontidão em João Pessoa e Campina Grande. No mesmo dia, houve, em resposta, uma manifestação no CEU (Clube do Estudante Universitário), onde funcionava o Restaurante Universitário (no lugar funciona hoje o Cassino da Lagoa). No dia seguinte, o então delegado do DOPS foi ao CEU tentar convencer os estudantes a não fazer as manisfestações que já estavam programadas para o dia da missa de sétimo dia de Edson Luis. Não teve jeito, depois da missa, a massa estudantil saiu em passeata.
Pelo que se nota no seu relato, os estudantes mostravam muita disposição de luta. Quais os episódios mais marcantes que você lembra desses confrontos com as autoridades, com a polícia?
Um deles é o do dia da missa em homenagem a Edson (4 de abril). A passeata desceu pela rua Duque de Caxias, fazendo paradas e comícios-relâmpagos, em direção ao palácio do governo, na Praça João Pessoa. No início, havia cerca de mil estudantes, mas esse número foi crescendo durante o percurso. As tropas da PM, em caminhões que tinham um grande banco ao longo da carroceria, com assentos para os dois lados, armadas de cassetetes de madeira e rifles com baionetas, acompanharam a passeata. Próximo ao palácio, em frente ao colégio Underwood, os policiais foram recebidos com vaias e o comando deu ordem para dispersar a massa. Aí começou a confusão. Houve pancadaria e quatro estudantes foram presos. Os demais se dispersaram e voltaram a se reunir no Ponto de Cem Réis. Depois de discursos, decidiram seguir em direção à Lagoa e ocupar o CEU. No caminho, botaram fogo numa caminhoneta oficial que estava ao lado do prédio da loja Nações Unidas.
Dizem que o CEU, o Cassino da Lagoa, era a base, o QG dos estudantes. Como é que era isso? A polícia chegou a invadir o CEU alguma vez?
O CEU era o ponto de encontro dos universitários. Funcionava como local de reuniões unificadas com as lideranças universitárias e secundaristas. Neste episódio do dia 4 de abril, foi ocupado pela massa estudantil. A polícia, a princípio, ficou na esquina da rua Diogo Velho com o anel da
Lagoa. Os estudantes receberam a visita do arcebispo Dom José Maria Pires, que foi se solidarizar com o movimento. Com o passar do tempo e vendo que os estudantes não iriam se dispersar, a polícia passou a fazer movimentações de intimidação, circulando no local com os caminhões lotados de soldados. O comandante da operação foi até o CEU. Chegou-se a tentar uma negociação. Foram escolhidos três estudantes para uma conversa com o governador, mas os estudantes exigiram que o governador fosse até o CEU. Nessa hora, caminhões da PM passaram no anel superior da Lagoa, por trás do CEU. As tropas foram vaiadas e começaram a atirar em direção aos estudantes. Três jovens foram atingidos. Outras escaramuças aconteceram durante o dia. Os estudantes reagiam aos ataques da polícia com pedradas. Houve novos feridos e novas prisões. Com o clima cada vez mais acirrado, a massa se dispersou. As lideranças resolveram, então, se deslocar para o auditório da FAFI. Lá, ficamos acampados por uns dias até sermos de novo desalojados pela polícia. Ao deixarmos o CEU, a polícia ocupou o local e montou barricadas com sacos de areia. A partir daí, perdemos o nosso Clube dos Estudantes Universitários até os dias de hoje. Além desse caso, tivemos outros entreveros com a polícia ao longo do ano de 68. Houve manifestações no pátio da igreja Catedral, no Ponto de Cem Réis, na rua Visconde de Pelotas, onde o professor universitário e futuro deputado federal pelo MDB, Otacílio Queiroz, foi espancado. Dizem que o ódio da repressão foi ampliado porque exibiram uma pintura do rosto de Che Guevara (um dos líderes do movimento que culminou com a Revolução Cubana, em 1959) durante uma manifestação.