O discurso contra a corrupção e a criminalidade está na boca dos candidatos no segundo turno das eleições. Mas, independentemente de quem vencer a disputa neste domingo (28), o Brasil elegerá um presidente réu, um fato inédito desde a redemocratização do país, segundo pesquisa feita pela reportagem com ajuda de especialistas no tema.
Tanto Jair Bolsonaro (PSL) como Fernando Haddad (PT)respondem a ações penais ou de improbidade administrativa. Eleitos, os casos a que eles respondem não serão solucionados pela Justiça porque a Constituição determina que processos contra presidentes da República sejam suspensos durante o mandato. Na prática, vão governar com uma “espada sobre a cabeça”, sem a população saber se são culpados ou inocentes dos crimes ou irregularidades dos quais são acusados.
“Embora não se enquadrem na Lei da Ficha Limpa, o ideal é que não tivéssemos como candidatos à Presidência pessoas submetidas a processos”, disse o ex-procurador geral da República Roberto Gurgel ao UOL.
Paralelamente, Bolsonaro e Haddad são os únicos dos candidatos à Presidência que não assinaram compromisso de apoio às chamadas “Novas Medidas contra a Corrupção”, um pacote de projetos para melhorar o enfrentamento à criminalidade, inclusive a de colarinho branco, lançado por entidades do movimento “Unidos Contra a Corrupção”.
Estupro, fantasma, ciclovia, corrupção
Bolsonaro é réu em duas ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF). Os crimes imputados a ele são de incitação ao crime, injúria e apologia ao crime. Em 2003, Bolsonaro disse à deputada Maria do Rosário (PT-RS): “Jamais ia estuprar você, que você não merece”. E repetiu a frase em 2014: “Há poucos dias, você me chamou de estuprador no Salão Verde, e eu falei que não ia estuprar você, porque você não merece”.
As ações penais são relatadas pelo ministro Luiz Fux, do STF. O recebimento da denúncia foi feito pela 1ª Turma do STF em 2016, por 4 votos a 1. O processo está em andamento.
Bolsonaro não é réu no caso de contratação de uma funcionária fantasma conhecida como “Wal do Açaí”. No entanto, há uma investigação aberta contra ele pela Procuradoria da República no Distrito Federal.
Já Fernando Haddad virou réu, em 2018, em ação cível de improbidade administrativa. Segundo promotores do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), houve irregularidades na construção de um trecho de 12 km de ciclovia na capital paulista, como a utilização de um tipo de contrato que dispensaria licitação, superfaturamento e deficiências na execução do serviço.
A denúncia foi feita em 2016, mas só foi recebida neste ano pela 11ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo.
Haddad também foi denunciado criminalmente pelo MP-SP por corrupção, por supostamente receber propina de R$ 2,6 milhões da empreiteira UTC EngenhariaS.A. A ação corre em segredo de Justiça e não é possível saber se ele se tornou réu neste caso.
A reportagem procurou as assessorias dos dois candidatos, mas não obteve nenhum esclarecimento.
Situação inédita
O UOL consultou especialistas em direito para que avaliassem o ineditismo da situação. Não foi localizada nenhuma ação penal ou de improbidade administrativa em que Fernando Collor (PRN), Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT) respondiam processos, na condição de réus, quando foram eleitos em 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, respectivamente.
Os ex-procuradores gerais da República Roberto Gurgel e Cláudio Fonteles atuaram na PGR (Procuradoria Geral da República) ainda antes da primeira eleição pós-ditadura e são alguns dos que não se recordam de uma situação como a que o Brasil vai viver agora.
Fonteles destacou que os processos de Bolsonaro ou Haddad não serão julgados, a depender de quem for eleito. Isso porque a Constituição dá imunidade temporária aos presidentes.
Todos os processos relacionados a fatos ocorridos fora do mandato só podem ter sequência depois que eles deixarem o cargo de presidente, de acordo com o parágrafo 4º do artigo 86 da Carta Magna: “O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.
Gurgel ponderou que, mesmo réus, Haddad e Bolsonaro têm direito à presunção da inocência. A Lei da Ficha Limpa só proíbe a candidatura de políticos já condenados por mais de um juiz em crimes graves.
O hoje advogado lamentou o fato de que os processos ficarão parados por quatro anos, durante o mandato do novo presidente, sem que se saiba se ele é culpado ou inocente. “Bom, não é. O ideal é que, antes das candidaturas, essa questão estivesse resolvida”, afirmou Gurgel, antes de acrescentar sua opinião de que o Judiciário poderia ser mais rápido.
Fonteles entende que o fato de termos um presidente réu a partir de 2019 “é até bom”, já que o Ministério Público estaria atuando de forma impessoal. “Isso faz parte do jogo, nesse momento político do Brasil”, afirmou, ao UOL. “As pessoas não estão mais com aquela impunidade. Tem que ter cautela.”
O ex-procurador diz que o eleitor deve considerar o conteúdo das acusações na hora de decidir o seu voto. “A postura do eleitor é pegar esses processos, ler e, na hora de votar, sopesar esses processos, aderindo ou não a esses candidatos. Se o eleitor sentir que é grave o que está em apuração, vote no outro.”
Um dos criadores da Lei da Ficha Limpa, o jurista e ex-magistrado Márlon Reis concorda. “Os eleitores devem, sim, considerar as ações pendentes e tirar suas próprias conclusões, de uma perspectiva política, e não criminal”, avaliou.
Uol