Após identificar que derrotas judiciais podem consumir boa parte dos recursos previstos para custear a nova versão do Bolsa Família, o governo finalizou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para abrir espaço no Orçamento e permitir o pagamento do benefício no próximo ano, marcado pelas eleições presidenciais. O texto prevê que as despesas com sentenças da Justiça poderão ser pagas com uma fração do valor em 2022 e mais nove parcelas anuais. As mudanças previstas na PEC criam uma margem de cerca de R$ 40 bilhões no Orçamento de 2022.
Os técnicos do Ministério da Economia avaliam que, com o colchão de recursos criado pela PEC, será possível propor um programa social com pagamento médio de R$ 300 para 17 milhões de pessoas. Atualmente, o pagamento médio do Bolsa Família é de R$ 192 para 14 milhões de beneficiários. O benefício é visto dentro do governo como vitrine para a campanha do presidente Jair Bolsonaro nas eleições do próximo ano, e ele já declarou reiteradas vezes que a nova versão do programa social tem de ficar em R$ 300. O custo total do benefício no próximo ano deve ficar em R$ 56 bilhões.
‘Míssil’ contra ‘meteoro’
O texto vem sendo discutido há duas semanas entre o Ministério da Economia e o Palácio do Planalto e deve ser apresentado pelo ministro Paulo Guedes junto com o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, aos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco, (DEM-MG) em uma reunião na tarde de hoje. A medida trata dos chamados precatórios, dívidas do governo reconhecidas pela Justiça e para as quais não é mais possível recorrer.
A PEC foi citada pelo presidente Jair Bolsonaro dias atrás quando se referiu ao programa social. O texto da PEC permite o parcelamento das dívidas judiciais de maior valor, na casa de milhões de reais, e não mexe em dívidas menores, como débitos relacionados a aposentadorias do INSS.
A proposta foi classificada por Guedes na última sexta-feira como um “míssil” para atingir um “meteoro” criado por outros poderes, já que os precatórios são definidos pelo Judiciário anualmente.
Antes de saber dos detalhes da PEC, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) classificou o parcelamento dos precatórios como “calote”.
O governo terá de pagar R$ 89,1 bilhões em 2022 por causa de sentenças judiciais de que não pode mais recorrer, segundo dados aos quais o GLOBO teve acesso. Esse número representa alta de 62% em relação ao valor previsto para este ano (R$ 54,7 bilhões) e que já vinha crescendo acima da inflação.
O crescimento previsto dos precatórios para o próximo ano é muito superior à alta da inflação e ao teto de gastos, que é corrigido pelo IPCA.
Em razão da trajetória estimada de inflação para este ano, o governo previa uma folga de R$ 30 bilhões no teto de gastos, o que significa mais recursos para gastar no próximo ano. Isso acontece porque o teto é corrigido pela inflação em 12 meses até junho, quando a taxa acumulada ficou acima de 8%. Mas as despesas com aposentadorias são corrigidas pelo índice de preços no fim do ano, quando se espera um percentual mais próximo dos 6%. É dessa diferença que o governo estima a margem de R$ 30 bilhões.
E era justamente desta folga que viria boa parte dos recursos para custear o Bolsa Família sem ferir regras fiscais, mas o aumento das despesas previstas com precatórios engoliu essa margem no Orçamento.
Integrantes do Ministério da Economia têm dito que algumas das decisões judiciais têm características não recorrentes e se transformaram em dívidas bilionárias. Um exemplo disso é a discussão sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) dos estados, um esqueleto que vem desde o governo Fernando Henrique Cardoso e teve decisão só agora. As despesas relacionadas a esse passivo subiram em R$ 17 bilhões a conta total de precatórios de 2022.
Para conter o avanço das despesas com sentenças judiciais e deixar a dinâmica desse gasto mais próxima do teto, o governo vai propor alterar a Constituição.
‘Superprecatórios’
Hoje, só é permitido o parcelamento, por um período de até cinco anos, de precatórios que custam 15% do total desse tipo de dívida. Mas praticamente não há dívidas nesse montante. Por isso, o governo vai propor que precatórios acima de 60 mil salários mínimos (R$ 66 milhões) também possam ser parcelados. A esse tipo de dívida será dado o nome de “superprecatório”, e a regra será permanente.
Nesse caso, uma fatia de 15% do precatório será paga em um ano e o restante parcelado em nove anos. A mudança vai abranger 42 decisões judiciais em 2022 e dará um alívio de R$ 20 bilhões para o governo no próximo ano.
O texto cria um regime especial para o pagamento das dívidas judiciais até 2029. A PEC limita a despesa total com precatórios a um percentual de 2,6% da receita corrente líquida (disponível para gastar) acumulada 12 meses antes da requisição dos precatórios. É uma forma de delimitar quanto pode ser pago em um ano.
Essa mudança vai abranger mais de 7 mil decisões judiciais e gerar uma economia de mais R$ 20 bilhões no próximo ano. O pagamento das sentenças será dividido: o desembolso em um ano (limitado a 2,6% da receita) e mais nove parcelas anuais.
O governo começou a elaborar a proposta após ser surpreendido pelo tamanho da conta de sentenças judiciais, a maior parte delas do Supremo Tribunal Federal (STF). Nas semanas que antecedem o envio do Orçamento do ano seguinte ao Congresso, o Ministério da Economia recebe a relação das sentenças que precisam ser quitadas. O Orçamento será enviado ao Congresso pelo governo no dia 31.
A ideia da proposta é deixar o valor dos precatórios mais próximo ao patamar deste ano, de R$ 54,7 bilhões. Sem a mudança, os técnicos da equipe econômica dizem que os precatórios consumiriam o equivalente a 68% das despesas não obrigatórias do governo (investimentos e custeio da máquina pública).
Caso o Congresso aprove a PEC da forma como desenhou o governo, haverá espaço extra no Orçamento não só para o novo Bolsa Família, mas para investimentos e despesas de outras áreas. Para aprovar uma PEC, são necessários os votos de 308 deputados e 49 senadores em duas votações em cada Casa.
Regra para estados e municípios e a União
A proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permitirá o parcelamento das dívidas federais decorrentes de decisões judiciais também vai dar mecanismos para o governo fazer encontros de contas com relação às sentenças que beneficiam estados, municípios e empresas.
No caso de estados e municípios, a proposta permitirá um encontro entre passivos. Por exemplo, uma decisão judicial que beneficia um estado poderá ser usada para abater a sua dívida com o governo federal. Dessa forma nenhuma das partes precisará fazer desembolsos. Ou seja, se um estado tem um precatório de R$ 5 bilhões, ele poderá usar esse valor para pagar a dívida com o governo federal.
A proposta cria também um fundo no qual a União vai colocar ativos, como imóveis. Esses ativos, por sua vez, poderão ser usados para pagar dívidas judiciais do governo com empresas.
Caso uma companhia ganhe um processo contra o Executivo, esse valor poderá ser pago pelo governo com ativos que serão inseridos nesse fundo. A forma como os valores dos bens serão mensurados e a possibilidade de deságios serão regulamentadas após a eventual aprovação da PEC.
A Economia vê nas propostas uma forma de equalizar o balanço da União, ao reduzir ativos imobilizados (que podem estar subutilizados e gerando custos) e as dívidas federais.
O Globo