A Revista Fórum trouxe, na manhã desta sexta-feira (06), uma entrevista com a ex-presidente Dilma Rousseff realizada logo após o Juiz Sérgio Moro decretar a prisão de Lula.
Com a emoção do momento, Dilma falou com a reportagem por cerca de 1h E 36 minutos. Nesse tempo Dilma lamentou o que está acontecendo com o ex-presidente, disse que acredita em sua força e afirmou que a prisão pode ser um prenúncio para o adiamento das eleições de 2018.
Leia a entrevista completa:
A presidenta Dilma concedeu esta entrevista numa sala do 2º andar do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ao lado de onde estava o ex-presidente Lula. Dilma disse que ontem havia chorado. E que isso nunca acontecia com ela mesmo nos períodos duros da ditadura militar. Apesar disso, estava tranquila e confiante na força de Lula para resistir. Conversamos por mais de 1h. E 36 minutos com o gravador ligado e que resultaram nesta entrevista que você pode ler aqui. Um documento histórico, porque Dilma faz uma análise do que estamos vivendo num momento quente e envolto de um turbilhão de emoções.
Fórum – Presidenta, estamos em um momento decisivo da história do Brasil. Eu tenho escrito que a gente está entrando na terceira fase do golpe. Não sei se a senhora concorda com isso. Qual sua análise deste momento?
Dilma Rousseff – Eu concordo com você. Eu acredito que o impeachment é o ato inaugural. O golpe não é só aquele ato, a partir dali se instaura um processo. E esse processo tem várias fases. Uma delas é adotar um programa que foi rejeitado nas últimas quatro eleições. E na última eleição foi rejeitado por 54 milhões e meio de votos. E eles, ao darem o golpe, aplicam o programa de destruição das garantias sociais mínimas que nós conquistamos nas últimas décadas, ameaçam a soberania e querem instituir o Estado mínimo. Desregulamentam o trabalho, buscam uma reforma da previdência que nada mais é que um saque sob os recursos da previdência que são o maior fund anual disponível no Brasil e transformam o processo de redução da desigualdade no aumento da desigualdade. Ao mesmo tempo prometem sair da crise e só aprofundam a crise. Enfim, adotam o projeto para o qual não foram eleitos. Para o qual não tinham mandato e nem sustentação. Não tinham legitimidade.
E aí há uma grande surpresa, porque nessa segunda fase do golpe eles também não conseguem impedir o estancamento da sangria, e apesar de falar que eles tinham um acordo que abrangia tudo, inclusive a Justiça, o Supremo, eles se transformam em um dos objetos da Lava Jato, apesar de a Lava Jato focar no lulopetismo, ou seja, nós, e com o objetivo claro de nos destruir politicamente. Tanto o PT, quanto eu – sofrendo o processo de impeachment – e o Lula – condenado por corrupção. Era essa a ideia. E você sabe que na justiça do inimigo há o chamado fogo amigo. De repente os tiros não conseguem se focar só em um alvo e se dispersam. E eles acabaram acertando no Temer, no Aécio, nas malas deles. O PSDB mostra toda a sua capacidade de ter contas no exterior, enfim, constitui-se um quadro em que fica muito claro quem são os grandes corruptos deste país. Junta tudo isso, você tem uma crise. Essa crise é a destruição da representatividade do partido, do chamado “Partido da Modernização Conservadora”, o PSDB, e o PMDB. Você tem um descrédito generalizado das lideranças desses partidos golpistas e conservadores. Eles perdem densidade política e portanto densidade eleitoral. E eles ficam sem candidato. E o ódio desencadeado para viabilizar o golpe, o ódio plantado para construir um clima de violência, dirige-se para a extrema-direita. Que aproveita e sai do armário com a nossa tradição de controle violento da sociedade, controle social violento que nós herdamos de 300 anos de escravidão. E por causa de uma resistência imensa da elite a compartilhar o que quer que seja com seu povo. De aeroporto até vagas nas universidades. E até dar carteira de trabalho para domésticas se tornou uma coisa absurda do ponto de vista da elite, que herda toda uma tradição de tratar a exclusão como um direito hereditário deles, um privilégio. Aí a questão da relação, a lógica do privilégio e exclusão, estão sempre unificadas no Brasil. Tudo isso cria esse clima que planta ódio e colhe mais violência política. E a violência que sempre foi dirigida para pretos e pobres ultrapassa o limite do preto e pobre e chega na violência aberta na sociedade. Então, o MBL mostra suas garras, o Bolsonaro mostra suas garras, aparece todo o ritual do armamento, do combate à pequena corrupção das favelas. O aviãzinho da favela e um pseudo crime organizado das favelas… O ex-ministro do FHC, Paulo Sérgio Pinheiro, diz que o crime organizado necessita de grandes redes financeiras, e portanto, sistema bancário. E portanto vive em Miami e outras regiões do mundo, e não na Rocinha.
Tudo isso eu acho cria uma surpresa. Qual é a surpresa? O lulopetismo, que é o objeto a ser destruído, o inimigo a ser derrotado, não é. Isso porque nós resistimos ao golpe, nós criamos a nossa narrativa, dizendo que era golpe. Nós conseguimos romper o bloqueio da mídia, não só através da internet, através da mídia internacional, mas também da crescente compreensão de que o golpe tinha sido dado pra enquadrar o Brasil social, econômica e geopoliticamente. A melhoria que sempre foi prometida não aparece. Outra coisa, eles reduzem todas as políticas sociais. Outro dia eu soube, acabaram com a Farmácia Popular. A pessoa pobre, que precisa de tomar remédio para diabetes ou para hipertensão, é privada disso. Depois eles destroem toda a política de cotas, tirando dinheiro das universidades. Extinguem Ciências Sem Fronteiras, começam a fechar escola de medicina, reduzem o Programa de Aquisição de Alimentos, que é responsável pela redução da pobreza no campo, a nada, a pó. Enfim, todas essas políticas começam a ruir. E mesmo a reforma trabalhista que foi aprovada, sem alguns protestos, efetivos e devidos, o professor da universidade privada começa a perceber que é mandado. Porque ele é recontratado com um terço do salário. E se cria o trabalho intermitente, o trabalho precário e se começa a ter uma deterioração social violenta.
Duas coisas acontecem: primeiro, essa violência. Segundo, os mecanismos de combate à corrupção estão distorcidos. Ninguém nega a importância do combate à corrupção, muito menos nós. Tanto no governo Lula quanto no meu, nós criamos instrumentos para combater a corrupção. Mas eles agora pegam nossos instrumentos e usam para tentar nos destruir. Isso é algo que começa também a aparecer, porque fazem isso de comum acordo com a mídia. Eu faço e divulgo, julgo e condeno. Onde? No estranho tribunal da mídia. Onde você não tem direito de defesa, de advogado, de contraditório. Só a versão que a mídia quer passar. Quando isso sai da mídia e vai pro próprio judiciário, começa todo um processo em que fica clara a acusação, porque nem sequer a acusação ficava muito clara, você não tinha acesso. E se começa a discutir o teor da acusação e assim por diante. Com o lulopetismo, nós não somos destruídos. O PT que chegou a ser palavrão tem hoje 20% do eleitorado. E de 100% do eleitorado. Não é daqueles que dizem que vão votar. E as pessoas passam a lembrar do governo do ex-presidente, e aumenta a intenção de voto nele. Ao mesmo tempo cai a sua rejeição. Cai a rejeição por dois motivos: por essa percepção das pessoas de perda de direitos e porque nós conseguimos vencer, furar a narrativa do golpe. Via vocês, blogueiros, via mídia internacional. Porque a grande mídia brasileira havia nos bloqueado. Hoje estão fazendo perseguição aberta ao Lula porque todo golpe tem um problema para responder: como eu me reproduzo? Eu tenho que me reproduzir. Eles têm que garantir a continuidade do projeto dele, que as coisas continuem do jeito que estão. O problema é que eles não têm candidato. Quem tem candidato é a extrema direita e nós. Como nós não morremos, não nos destruíram, repõe-se a contradição. E repõe-se com um grau muito acirrado de violência por parte deles. Há um certo tipo de violência que se exerce contra nós que é a violência surda, de condenar inocente. O TRF4 diz: não pode prender antes de esgotado todo o processo nessa instância. Ele manda prender antes de se esgotar. E por aí vai. E aí posso fazer uma lista de processos que implicam em uma tentativa de nos tirar do pleito.
Eu acho que o Lula, nesse processo, passa a ser um pouco além do que ele é. Passa a ser a força concentrada que não é só petista, de movimentos sociais, ela é mais encorpada, representa a força capaz de confrontar esse projeto do golpe.
Fórum – E agentes políticos já começavam a olhar e falar “talvez tenha que ser por aqui, se não, não vai ter outra pessoa pra segurar…”
Dilma Rousseff – Sim. E fazer o Brasil se reencontrar consigo. Vamos ter que recompor o Brasil, ele está divido. E não tem jeito de recompor o Brasil por cima. Só pode ser a partir de um pacto construído em processo eleitoral, que é a única forma de se reconhecer. É que nem jogo de futebol, eu reconheço o resultado, porque participei das regras, aceitei os termos, e vou fazer o jogo nesse campo. Agora, se depois do jogo jogado, rompo as regras, dá nisso que deu. Que é o que o PSDB fez.
Fórum – Esse açodamento pela prisão do Lula não é um prenúncio de que as eleições deste ano estão em risco?
Dilma Rousseff – Acho que é um prenúncio de que tem gente que pode querer que não tenhamos eleição em 18.
Fórum – Pois mesmo não sendo o Lula o candidato do campo progressista, ele será forte o suficiente para ir pro segundo turno…
Dilma Rousseff – Eu acho que eles têm um problema, que não é um problema que se esgota no Lula, até porque quem o Lula indicar pode ir pro segundo turno. Tem outra coisa. Por que estão querendo prender o Lula até amanhã? Eles têm medo do habeas corpus, eles tem medo que ganhemos uma liminar. Visto que houve, por parte de seis ministros que mostram que votam pelo reconhecimento de que é necessário esgotar todo o processo para então, com base na presunção de inocência, com culpa formada, poder prender, poder condenar. Aí se cumpre a Constituição. Ocorre que está cada vez mais claro que eles passaram dos limites. E isso fica claro nos votos dados ontem. Então, acho que eles estavam temendo que houvesse liminar por conta das manobras que alguns acusaram de terem sido feitas para adiar o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade. Essa é uma suposição que não podemos afastar. Além disso, acho que tem outra coisa. Mais cedo ou mais tarde terão que julgar essas ADCs. E aí vai ficar muito claro para a opinião pública nacional e internacional que tudo foi feito para prender ele [Lula]. Hoje, acredito que estamos vivendo mais um ato de arbítrio. Como você justifica que eles não cumpriram a própria informação deles que dizia que só podia haver execução da sentença do TRF4 depois de esgotados todos os procedimentos da segunda instância? Eles sequer responderam.
Fórum – E entre o TRF4 enviar o ofício para o Moro e o Moro mandar prender foram só 22 minutos.
Dilma Rousseff – Isso.
Fórum – Todo esse escândalo, digamos, de injustiças, está ficando claro, inclusive na comunidade jurídica, com o número de advogados, juízes e promotores que se moveu desde seu processo de impeachment até agora. Isso me parece perceptível, até pela lista de assinaturas contrária à prisão. Como avalia essa questão?
Dilma Rousseff – Apesar das declarações absolutamente arbitrárias do senhor Mendoncinha, houve o surgimento de vários cursos sobre o golpe de 2016 em várias universidades, com tentativa de proibição. Porque você veja o seguinte: ali começa a compreensão do que está acontecendo. Eu acredito que em nenhuma vez na história recente, a academia pôde discutir um evento recente tão na hora que ele está acontecendo. Nunca soube.
Fórum – Como fica o cenário se o Lula for preso amanhã (sexta) ou segunda? (A entrevista foi feita na quinta à no final da noite.)
Dilma Rousseff – Eu acho que o Lula é um homem de coragem. O Lula vai saber enfrentar esse desafio humano, que é perder a liberdade. E ele só pode enfrentar isso por suas convicções, pela certeza da sua inocência. A prisão do Lula é uma tentativa tola. Sabe, Rovai, eu nunca chorei. Nem na minha prisão, nem no meu impeachment. Hoje, eu chorei. No dia que eu desci a rampa depois do impeachment, ele chorava como uma criança e eu falava: ‘Você é chorão, né, Lula?’. Hoje, ele disse pra mim: ‘Poxa, você é chorona, né?’. Mas o que eu estava dizendo é que acho que eles subestimam uma coisa do Lula. Ele é uma pessoa que é capaz de se entregar, não no sentido de se entregar para a polícia e, sim, de se entregar por uma causa, de sofrer até as últimas consequências por essa causa. É por isso que ele disse uma vez: ‘Eu participo dessa eleição preso ou solto, considerado inocente ou culpado por eles. Pouco se me dá. E participarei em todas as condições, até morto’. Isso significa a consciência de que ele está procurando algo para além de 2018. O que é esse algo que ele procura? Eu acho que ele procura recompor o país, fazer o país se reencontrar. E ele pra fazer esse país se reencontrar, vai ter uma dificuldade imensa, mas ele é um homem de enfrentar dificuldades. Ele terá um período de transição. Você vai ter de discutir essa reconstrução do país ou numa Constituinte ou num referendo revogatório a volta de vários direitos retirados, da anulação de vários atos contra o patrimônio público praticados. Enfim, você tem uma gama imensa de coisas para analisar. E tem de ter também uma perspectiva pra viabilizar uma nova etapa pra esse país. Eu acredito na reforma política. Não há 25 projetos para esse país. Então, para que são esses 25 partidos, o que eles querem? Nós temos de ter uma reforma tributária. Não tem possibilidade de você correr atrás da máquina da desigualdade social, da dívida social. É um desatino o que essa elite fez com nosso povo nos últimos 300 anos. Nós não temos estoque de riquezas, pois a riqueza não é renda só. Você vai nos Estados Unidos, eles passam uma crise, mas têm escola, estrutura de saúde, estradas, ou seja, há estoque de riquezas que a sociedade acumulou. Nós recém começamos isso. Tudo isso implica em ter tributos. A história de que o povo paga muito tributo, a gente tem de perguntar: povo qual? Uma parte da população brasileira paga muito. Quem são? Todos os assalariados e a classe média. Mas tem uma parte que não paga nada, porque não tributam o grande capital neste país. Quando você quer tributar, perde no Congresso. Então, tem de fazer uma discussão prévia sobre essa questão. Nós temos de ter uma reforma tributária. Não tem política social nesse país. Você tem de ter uma educação de qualidade. Não pode vender a Petrobras. Não pode acabar com o Pré-Sal. Não pode acabar com o modelo de partilha. Fora a mídia, com o controle de quatro cinco ou seis famílias, eu acho que tem um problema seríssimo. Não é possível esse nível de corporações. Se a gente for pegar na teoria política, o que é a Justiça: é a violência do Estado sob controle. Você vai ter de recompor isso. Não dá para tentar uma autonomia de certas corporações, que julgam ter o direito de estar acima de tudo e de todos, de não prestar contas, de não dar satisfação, de não ter transparência e de construir para si um conjunto de privilégios. Mudar Isso vai ser a parte mais difícil, mas será necessário. E vai haver um período de transição entre esse desastre que aconteceu até a reconstrução desse processo. Sem fazer uma eleição nós nunca conseguiremos. Por isso é gravíssimo qualquer variante, que nos leve para não ter eleição direta. Todos que alegarem que não há condições de fazer eleição direta querem perpetuar um estado de desorganização e de caos, que leva à violência. Olhe para a história. O fascismo surge num momento de desorganização política e econômica.
Fórum – Mas acho que a aposta é essa. Eles estão apostando no confronto e na violência.
Dilma Rousseff – Eles plantam o ódio para colher violência. Acho que você vê isso nas caravanas, especialmente na última.
Fórum – Presidenta, do ponto de vista do combate político, o que é possível fazer para não aceitar todas as condições que estão sendo colocadas pelo lado de lá? Pergunto isso porque a senhora teve uma história de combate em outra ditadura, estamos caminhando por um processo que não é mais democrático, as regras democráticas não estão sendo respeitadas, como fazer?
Dilma Rousseff – Uma vez, diante dessa grande interrogação, eu pensei uma metáfora para poder entender a diferença entre os dois golpes que eu vivi. Eu vivi o golpe de 64, que se acentuou em 68, que leva a todo um terror de Estado. A diferença do de 64 para o de 2016 me faz pensar na metáfora da árvore da democracia. Uma árvore é uma coisa viva, que você cultiva. Se não cultivar, cai galho etc. A ditadura é o machado, que simplesmente corta a árvore. Acaba com o direito à liberdade de expressão, de organização e passa a ter o direito de matar, prender, torturar. Você arrebenta o direito para toda a sociedade. Acho que esse golpe é um ataque à árvore da democracia, mas que tipo de ataque? Não é o mesmo de arrebentar toda a árvore. Você pega uma porção de parasitas, uma porção de fungos, uma porção de cupins joga na árvore e algumas partes dela vão secando. De certa forma, o fascismo e o nazismo têm um pouco disso. Nesses dois casos se atinge toda a árvore. No nosso caso, deste golpe 16, a ideia não é atingir toda a árvore, é concentrar o ataque sobre o inimigo, que neste caso é o Lulopetismo. Mas você não controla o processo de destruição e ela atinge outros pontos. Ou seja, não dá para achar que é ditadura como a de 68. E isso implica que tipo de luta você faz. Quando se fala em radicalizar a luta democrática, você quer dizer que tem de pegar adubos e colocar na árvore para ela voltar a florir. Tem de levar ao extremo a luta democrática em todos os níveis. Minha geração foi para a luta armada por absolta descrença na democracia de então e foi um pedaço de uma geração que teve seus desafios e suas frustrações, porque a violência da luta armada é complicadíssima. Ela gera um imensa violência contra você mesmo. E nós temos a grande felicidade de estarmos vivendo, ainda que nessas condições, com uma melhor perspectiva de luta. Nós podemos radicalizar a democracia. Então, é muito importante que nós estejamos preparados para esse tipo de combate, que é duradouro.
Revista Fórum