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Bolsonaro desmonta programa de cisternas e favorece uso político de emendas

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Matava-se uma galinha, alguém levava um porco. Sanfoneiros eram chamados.

A “inauguração” de uma cisterna de alvenaria nas terras de uma família de sertanejos no semiárido de Pernambuco era motivo de comemoração.

Como relatam moradores de Afrânio, município a 778 km do Recife, próximo à divisa com o Piauí, esses eventos coroavam um trabalho coletivo que também rendia recursos para pedreiros e comerciantes locais, que forneciam serviços e materiais de construção para a obra hídrica.

Representantes de associações, sindicatos rurais, ONGs e funcionários públicos envolvidos na implantação da benfeitoria participavam da celebração. Sob o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), porém, esse tipo de evento público vem ocorrendo cada vez menos.

A atual gestão caminha para fechar o pior ano de implantação de cisternas para populações de regiões que convivem com a seca desde 2003, quando foi lançado o programa federal sob Lula (PT).

Cisterna em alvenaria do Programa Cisternas do governo federal em propriedade rural no município de Afrânio (PE)
Cisterna em alvenaria do Programa Cisternas do governo federal em propriedade rural no município de Afrânio (PE) – Karime Xavier/Folhapress

O projeto instalou mais de 100 mil reservatórios em um único ano e se aproximava da marca geral de 1 milhão de unidades, mas agora deve ter apenas 3.000 reservatórios entregues em 2021, segundo projeção informada à Folha pelo Ministério da Cidadania.

A União chegou a ter R$ 63 milhões orçados neste ano para essa finalidade. A verba disponível caiu para R$ 32 milhões, cifra que foi quase toda levada a empenho, ou seja, etapa em que o governo reserva o valor que será desembolsado quando o serviço for entregue ou concluído.

Até agora, porém, nada foi pago. O governo Bolsonaro culpa a pandemia da Covid-19.

O Programa Cisternas já obteve reconhecimento nacional e internacional, entre eles um prêmio da ONU (Organização das Nações Unidas) em 2017, o Prêmio Política para o Futuro da UNCCD (Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação).

Hoje o déficit de cisternas no semiárido é 350 mil unidades, segundo a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede de organizações da sociedade civil formada por ONGs, instituições sindicais, religiosas e de agricultores familiares.

O desmonte do programa federal impacta não apenas na quantidade de unidades entregues, mas no abandono de regras e critérios gerais para atendimento da demanda.

Na prática, o vácuo com a perda de participação e controle social por conselhos municipais e ONGs favorece o uso político da distribuição de cisternas. O caminho então se abre para o emprego de verba de emendas parlamentares para municípios escolhidos a dedo pelos congressistas.

Em seguida, com critérios para a entrega das cisternas sob responsabilidade das administrações locais, amplia-se o risco de interesses paroquiais ficarem acima das reais necessidades das famílias.

Como a Folha mostrou neste domingo (5), a entrega de cisternas compradas com verba federal tem sido condicionada a apoios políticos. A prática relatada, comum no país e chamada de​ toma lá, dá cá, foi alvo de críticas de Bolsonaro na campanha de 2018, mas depois consolidou-se ao longo de seu governo.

Em Afrânio (PE), o agricultor Adailson Gerson de Brito, 45, começou a colaborar para a implantação das cisternas em 2004, por meio da organização não governamental Neps (Núcleo de Educadores Popular do Sertão de Pernambuco). Hoje ele lamenta o enfraquecimento do programa federal.

Segundo ele, os conselhos municipais tinham 70% de representantes da sociedade civil e outros 30% do poder público. As comissões, diz, visitavam as famílias e checavam se elas se encaixavam nos critérios do programa.

“Aí vinha o processo de construção com as capacitações das famílias, quando elas iam aprender como lidar com as cisternas, como conservar”, conta o agricultor.

“Agora tem a questão política, as cisternas que chegam são pela Codevasf [órgão federal] e emenda parlamentar. Não tem mais o envolvimento da sociedade civil, das comunidades e das famílias na participação de como distribuir. Agora é mais com aquele que é chegado a determinado político.”

A agricultora Girlene Maria de Souza Lima, 45, teve a experiência de coordenar o conselho municipal por quatro anos e diz que o prejuízo social cresce com o esvaziamento do programa.

“Quando vêm cisternas através de projetos, e o conselho distribui para cada associação, aí sim, é uma coisa realizada com sucesso, porque não há interferência de um político. Os presidentes das associações também são agricultores, conhecem a realidade e sabem quem necessita”, afirma.

Segundo ela, o conselho municipal de Afrânio conta hoje com 42 associações. “Se não dá para cada uma pegar a quantidade certa, se não dá para entregar a todos agricultores, é feito um sorteio e assim é distribuído.”

Segundo Alexandre Pires, coordenador executivo da ASA, “por emendas parlamentares, cada congressista vai aportar o recurso nos governos que lhe são favoráveis e depois vão querer certamente apontar dentro dos estados quais municípios e comunidades onde têm seus redutos para serem beneficiados”.

“É um crime, na verdade, o que está acontecendo, com o desmonte de uma política pública que sempre primou pelo cuidado com a ética na gestão do recurso público, por utilizar critérios de natureza técnica dentro das políticas públicas.”

Hoje o déficit de cisternas no semiárido é 350 mil unidades, segundo a ASA, com base em dados de comissões municipais formadas por organizações de base e organizações de assessoria da rede.

Atualmente, a chamada emenda de relator é peça-chave no jogo político em Brasília, pois é distribuída por governistas em votações importantes no Congresso. O dinheiro disponível neste ano é de R$ 16,8 bilhões.

Desde o ano passado, o Palácio do Planalto e aliados usam os recursos das emendas de relator para privilegiar aliados políticos e, com isso, ampliar a base de apoio deles no Legislativo e, assim, evitar o início de um processo de impeachment contra Bolsonaro.

Não há uma base de dados pública com a lista de deputados e senadores beneficiados por essa negociação política, o que levou o mecanismo a ser congelado pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

O agricultor Adailson Gerson de Brito, 45, que lamenta o enfraquecimento do programa federal de cisternas
O agricultor Adailson Gerson de Brito, 45, que lamenta o enfraquecimento do programa federal de cisternas – Karime Xavier/Folhapress

A última grande distribuição de cisternas em Afrânio ocorreu entre 2019 e 2020, com recursos de emenda parlamentar do político Adalberto Cavalcanti (PTB-PE), segundo agricultores. A entrega foi nesse período, mas a emenda dele era de 2018, quando era deputado federal. ​

A distribuição dos reservatórios comprados com a emenda de Cavalcanti é objeto de um processo de investigação eleitoral no TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de Pernambuco.

Adversários políticos acusaram Cavalcanti de orientar a distribuição feita pela Codevasf para beneficiar seus aliados, o que ele nega em juízo.

As emendas parlamentares em geral são dirigidas pelos congressistas para a compra e distribuição de cisternas de polietileno, que os sertanejos chamam de cisterna de plástico.

As caixas-d’água de polietileno são preferidas pelos políticos pois são mais fáceis de serem usadas como moeda de troca política, já que a sua entrega pode ser mais controlada por prefeitos, vereadores e correligionários e podem ser ostentadas em comícios e divulgada em fotos e vídeos nas redes sociais.

A inclusão da distribuição de cisternas de polietileno na política pública do governo federal, em paralelo às de alvenaria, começou em 2011, quando o atual líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) era ministro da Integração Nacional na administração da presidente Dilma Rousseff (PT).

Agora em 2021, ano de pior desempenho da distribuição de reservatórios de alvenaria, o senador tem participado de cerimônias de entrega de cisternas de polietileno ao lado de seus filhos, o prefeito de Petrolina, Miguel Coelho, o deputado federal Fernando Coelho Filho e o deputado estadual Antonio Coelho (todos do DEM)

No domingo (5), a Folha mostrou que o senador é o principal destinador de emendas de relator para a compra de cisternas de polietileno para no sertão de Pernambuco, onde, segundo moradores locais, a distribuição está contaminada pela “politicagem”.

Lá, a entrega das caixas-d´água não atende necessariamente a quem mais precisa, e sim a quem a aceita como moeda de troca.

​Procurado pela Folha, o Ministério da Cidadania afirmou por meio de sua assessoria que a crise de saúde da Covid prejudicou a implantação de cisternas pelo país.

“A respeito da execução de metas pactuadas, o Ministério da Cidadania destaca que a retração econômica causada pela pandemia nos anos de 2020 e 2021 impactou, entre diversos outros setores, a construção civil”, afirma.

“Além da escassez de material de construção disponível no mercado, as entidades executoras das tecnologias sociais de acesso à água registraram preços até 100% superiores aos praticados no período anterior à pandemia”, diz a nota.

Segundo o ministério, “para acompanhar esse novo cenário, o Programa Cisternas, executado pela pasta, está atualizando o custo unitário de referência de suas tecnologias sociais e buscando recursos externos para financiar a contratação de mais reservatórios”.

“De janeiro a outubro de 2021, foram entregues 2,7 mil reservatórios. A expectativa é concluir 3.000 unidades até o fim do ano”, completa.

Colaborou Mateus Vargas, de Brasília

A cada ano, o governo tem que enviar ao Congresso até o final de agosto um projeto de lei com a proposta do Orçamento Federal para o ano seguinte. Ao receber o projeto, congressistas têm o direito de direcionar parte da verba para obras e investimentos de seu interesse. Isso se dá por meio das emendas parlamentares.

As emendas parlamentares se dividem em:

  • Emendas individuais: apresentadas por cada um dos 594 congressistas. Cada um deles pode apresentar até 25 emendas no valor de R$ 16,3 milhões por parlamentar (valor referente ao Orçamento de 2021). Pelo menos metade desse dinheiro tem que ir para a Saúde
  • Emendas coletivas: subdivididas em emendas de bancadas estaduais e emendas de comissões permanentes (da Câmara, do Senado e mistas, do Congresso), sem teto de valor definido
  • Emendas do relator-geral do Orçamento: As emendas sob seu comando, de código RP9, são divididas politicamente entre parlamentares alinhados ao comando do Congresso e ao governo

CRONOLOGIA

Antes de 2015
A execução das emendas era uma decisão política do governo, que poderia ignorar a destinação apresentada pelos parlamentares

2015
Por meio da emenda constitucional 86, estabeleceu-se a execução obrigatória das emendas individuais, o chamado orçamento impositivo, com algumas regras:

  • a) execução obrigatória até o limite de 1,2% da receita corrente líquida realizada no exercício anterior;
  • b) metade do valor das emendas destinado obrigatoriamente para a Saúde
  • c) contingenciamento das emendas na mesma proporção do contingenciamento geral do Orçamento. As emendas coletivas continuaram com execução não obrigatória
  • O Congresso amplia o orçamento impositivo ao aprovar a emenda constitucional 100, que torna obrigatória também, além das individuais, as emendas de bancadas estaduais (um dos modelos das emendas coletivas)
  • Metade desse valor tem que ser destinado a obras
  • O Congresso emplaca ainda um valor expressivo para as emendas feitas pelo relator-geral do Orçamento: R$ 30 bilhões
  • Jair Bolsonaro veta a medida e o Congresso só não derruba o veto mediante acordo que manteve R$ 20 bilhões nas mãos do relator-geral

2021
Valores totais reservados para cada tipo de emenda parlamentar:

  • Emendas individuais (obrigatórias): R$ 9,7 bilhões
  • Emendas de bancadas (obrigatórias): R$ 7,3 bilhões
  • Emendas de comissão permanente: R$ 0
  • ​Emendas do relator-geral do Orçamento (código RP9): R$ 16,8 bilhões
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