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NO SENADO: CPI da Covid-19 expõe interesse de militares em faturar com a pandemia; entenda

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O lobby de militares em favor de empresas duvidosas, utilizando-se do acesso facilitado ao Ministério da Saúde na gestão do general Eduardo Pazuello, está diretamente ligado ao interesse de pessoas na ativa ou na reserva verde-oliva em faturar na pandemia por meio do governo federal. Para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, no Senado, o surgimento de egressos das Forças Armadas em negociações com firmas intermediárias era baseado no desejo de obter uma Letter of Intent (LOI) — carta de intenções — da Saúde.

A LOI, por si só, não garantiria ao grupo concluir a venda de supostas vacinas ao Ministério, mas tê-la poderia ser decisiva para outros negócios. A credibilidade dada por um documento oficial em que a Saúde manifesta a intenção de compra seria importante para impressionar, por exemplo, prefeituras de cidades menores. Ex-gestores do ministério dizem que o papel tem potencial para credenciar fornecedores junto a indústrias.

Conforme apurou o Estadão, senadores afirmam que, com a documentação em mãos, o grupo teria respaldo para ir ao mercado financeiro em busca de crédito, comercializar com empresas privadas e, aí sim, conseguir acesso a fabricantes de insumos. Os depoimentos e os documentos recebidos pela CPI apontam a participação direta de pelo menos quatro militares em ações para abrir portas no ministério a supostas vendedoras de vacinas: os coronéis da reserva Glaucio Octaviano Guerra, da Força Aérea Brasileira, Marcelo Blanco da Costa Helcio Bruno de Almeida, ambos do Exército, e o cabo Luiz Paulo Dominghetti, da Polícia Militar de Minas Gerais.

Senadores que mapeiam o trabalho dos intermediadores avaliam que todos tinham condições de saber que as ofertas de empresas como a Davati Medical Supply e a World Brands não tinham nenhum lastro. No entanto, as tratativas prosseguiram porque um acerto inicial com o governo brasileiro elevaria o patamar das empresas desconhecidas em seus respectivos mercados e abriria novas possibilidades.

Os egressos das Forças Armadas que surgiram em reuniões com o ministério para tratar de vacinas passam longe da ideia de “oficiais de pijama”. Em comum entre esses militares-empresários, a ida para a reserva na faixa dos 40 anos de idade com aposentadorias superiores a R$ 20 mil mensais e uma formação de alto nível que os capacita para trabalhar normalmente no mercado privado oferecendo serviços de consultoria de segurança e inteligência.

O tenente-coronel Helcio Bruno de Almeida, 63 anos, entrou para a reserva em março de 2000, condição que lhe rende R$ 23 mil por mês. Ele é presidente do Instituto Força Brasil, uma entidade que se propõe a estudar “soluções para os problemas sociais, econômicos e políticos do País”. O instituto, porém, é acusado de disseminar fake news inclusive contra vacinas da covid-19 que o militar tentou vender. Ele também se identifica como consultor de defesa.

O militar reformado atuou para que o reverendo Amilton de Paula, controlador da Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Religioso), conseguisse reunião no Ministério da Saúde. O religioso foi um dos que tentaram emplacar um acordo para a Davati, empresa dos Estados Unidos que não tinha doses em estoque e oferecia imunizantes da AstraZeneca. Ouvido pela CPI, o coronel ficou em silêncio quando perguntado se seu instituto receberia algum valor caso as vacinas fossem vendidas à pasta.

“Como conciliar a imagem do coronel Helcio, negacionista do Instituto Força Brasil, com a imagem do homem experiente de negócios, que depois negou a pandemia, a gravidade, depois nega que negou e, à custa da dor alheia, vai tentar levar vantagem em cima, tentando comercializar vacinas para a iniciativa privada, vacina essa que se recusa a tomar? A única conclusão a que nós podemos chegar é que estava nos dois lados do balcão”, afirmou a senadora Simone Tebet (MDB-MS).

Aos 49 anos, o coronel Marcelo Blanco está aposentado do Exército desde janeiro de 2018, com rendimento mensal bruto de R$ 23 mil mensais. O militar foi assessor do Departamento de Logística (DLOG) do ministério, responsável pelos contratos de vacinas, entre maio do ano passado e janeiro deste ano. Ele também estava nomeado como diretor substituto do setor.

Fora da pasta, abriu uma empresa de consultoria dias antes de ter levado o PM Luiz Paulo Dominghetti, vendedor da Davati, a um jantar com o então diretor do departamento, Roberto Dias. Em 30 dias, trocou mais de 100 ligações com o policial que relata ter ouvido de Dias nesse encontro um pedido de propina de US$ 1. No depoimento à CPI, ele confirmou que mantinha conversas com interlocutores da Davati, mas que todas eram visando negócios no mercado privado, sem relação com o ministério.

Como mostrou o Estadão, Blanco orientava Dominghetti sobre como acessar o DLOG. O militar sustenta que foram orientações despretensiosas. “Eu simplesmente o orientei a enviar para os e-mails institucionais. Não intermediei, não fui com ele lá, não articulei”, disse. Para o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), entretanto, tratava-se de “lobby na perspectiva de ter uma parceria comercial”.

Procurado, Marcelo Blanco disse que a tese “é totalmente desconectado da realidade dos fatos”.

A norte-americana Davati surgiu em Brasília a partir de articulação de outro coronel. Glaucio Octaviano Guerra, de 51 anos, está na reserva da Aeronáutica desde 2016, com pagamento de R$ 25 mil. Na ativa, pilotou aeronaves especiais para autoridades do primeiro e segundo escalões do governo federal e atuou no contrato da compra do avião presidencial. Atualmente, vive nos Estados Unidos, onde foi chefe da Divisão Logística da Comissão Aeronáutica Brasileira em Washington.

Hoje, se apresenta como consultor para empresas americanas que desejam ampliar a área de atuação para a América do Sul, Central, Ásia e Oriente Médio. É amigo de Herman Cárdenas, o dono da Davati, e foi quem colocou o americano em contato com Cristiano Carvalho, que viria a se tornar representante comercial da empresa no Brasil. À CPI, o vendedor disse que Guerra era “um apoio nos EUA” e que já havia intermediado uma negociação de luvas.

Guerra nega ter qualquer relação profissional com Cárdenas, embora seja admirador da ética e dos resultados do amigo. Também afirma não ser verdadeira a informação de Cristiano, de que teria intermediado a venda de uma aeronave para o empresário. Diz ter conhecido o compatriota em grupo de WhatsApp composto por representantes de empresas que lidam com “produtos referentes à covid”.

Contudo, Guerra reconhece que o fato de ter conectado Cárdenas a Cristiano Carvalho poderia ter motivado o americano a lhe “dar alguma coisa”. O coronel nega ter feito a ponte entre ambos por interesse em negócios futuros. “Minha relação com ele é só de amizade mesmo. Não tenho contrato com ele”, frisou. “Talvez ele (Cárdenas) ia me dar alguma coisa, mas não pedi.”

A atuação do grupo, que não tinha vacinas disponíveis para vender, é vista por senadores da CPI como semelhante a de estelionatários. Membros da comissão compartilham a suspeita de que, ao negociar produtos que não existiam e obter a LOI, militares e outros intermediários poderiam levar prefeituras a erro, obter algum tipo de vantagem ilícita e causar prejuízo a clientes.

A menção ao crime de estelionato tem sido recorrente nas sessões da CPI. No dia 4 de agosto, o senador Humberto Costa (PT-PE) classificou a “operação Davati/Ministério da Saúde” como “uma das coisas mais tragicômicas” na vida pública brasileira.

“De um lado, um grupo de estelionatários comandados por um estelionatário mor lá dos Estados Unidos, não é?. Tentaram vender terreno no céu, porque não tinham vacina. Encontram do outro lado do balcão uma meia dúzia de maus funcionários, de pessoas que nem são funcionárias do Ministério da Saúde, mas que viram também um espaço para se locupletarem”, afirmou Costa.

Em outra sessão, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) afirmou que o coronel Helcio Bruno abriu as portas do Ministério da Saúde “para estelionatários”. “É uma tristeza, é mais um vexame.”

Procurada, a defesa de Helcio Bruno afirmou que o militar, “imbuído de boa-fé, limitou-se a aceitar compartilhar uma reunião que já estava pré-agendada com uma empresa que anunciava uma relevante possibilidade de vacinação ao país”. Ressaltou ainda que no único encontro, com mais de dez pessoas, “todos os assuntos foram devidamente registrados em ata oficial, comprovando a absoluta transparência, lisura e regularidade com que toda a matéria foi tratada”.

A menção rotineira a militares na CPI deixa tensionada a relação dos senadores com a cúpula das Forças Armadas. Além dos indícios de interesses escusos por parte de alguns oficiais aposentados, existem as fortes críticas e suspeitas de incompetência na gestão da pandemia pelo Ministério da Saúde, em especial na gestão Pazuello.

Ao chegar ao fim, a comissão deve indiciar, por exemplo, o ex-ministro Eduardo Pazuello, general da ativa do Exército, e o ex-secretário-executivo da pasta, coronel Elcio Franco.

Uma ala da CPI quer avançar as apurações sobre a responsabilidade do atual ministro da Defesa, general Walter Braga Netto. Quando chefiou a Casa Civil, até o fim de março, ele coordenou o comitê de crise para enfrentamento à pandemia. Há uma série de críticas a omissões, lançadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

No entanto, a CPI tem adiado votar o requerimento de convocação do ministro por receio de que a relação fique ainda mais tensa. Até agora, julho viu o pior momento da crise entre a comissão e Braga Netto. Em uma das sessões, o senador Omar Aziz disse que os homens bons do Exército, da Marinha e da Aeronáutica deveriam estar envergonhados porque há anos o Brasil não via o “lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatruas dentro do governo”.

Apesar de o comentário ter sido pontual, Braga Netto reagiu de forma considerada intimidatória. Assinada pelo ministro e pelos três comandantes, uma nota divulgada no mesmo dia das declarações de Aziz salientava que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.

 

Estadão

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