Lançado por governo Bolsonaro, substituto de programa habitacional criado por Lula em 2009 não corrige, segundo especialistas, problemas do antecessor e paralisa construção de casas para faixa que mais precisa.
Não foi só o nome ou o logo que mudaram. O programa Casa Verde e Amarela, o sucessor do governo Bolsonaro ao Minha Casa Minha Vida, criado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, traz novidades que podem acabar excluindo pessoas mais pobres, alertam especialistas em habitação.
Além disso, o novo programa não corrige os graves problemas do Minha Casa Minha Vida, que construiu mais de 4 milhões de habitações, mas foi objeto de diversas críticas.
“Estamos lançando um programa que vai permitir que o Brasil tenha a menor taxa de juros na história num programa habitacional”, afirmou o ministro de Desenvolvimento Regional, Rogerio Marinho, no lançamento do programa, na semana passada.
O anúncio faz parte da tentativa, por parte de Bolsonaro, de criar sua própria marca social, estudando ampliar os investimentos públicos em obras para alavancar o crescimento econômico, como fazia o governo petista, e repaginando programas de gestões anteriores — o Bolsa Família, por exemplo, deve ser substituído pelo Renda Brasil. Além disso, o presidente tem visitado com frequência o Nordeste, tradicional reduto petista, para a inauguração de obras.
No Casa Verde Amarela, o governo ressaltou a diminuição de juros para financiamento — o que significa uma menor prestação mensal para as famílias que queiram adquirir novos imóveis pelo programa — com menores taxas para o Norte e Nordeste (4,25% ou 4,75%).
Apesar disso, especialistas afirmam que a diminuição da taxa de juros não impedirá que, por causa de outros aspectos definidos no novo programa — como a paralisação da construção de unidades para a renda familiar mais baixa e a “privatização da regularização fundiária” —, as pessoas mais pobres sejam afastadas do Casa Verde e Amarela.
“Pela maneira que está sendo proposto, com pouca discussão com a academia e debates públicos, corre-se o risco de repetir os erros do passado”, diz Fredrico Ramos, professor de microeconomia da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador no centro de estudos urbanos da Universidade de Amsterdã.
Para Beatriz Rufino, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a medida provisória do projeto “é muito vaga, não resolve problemas anteriores e abre novas questões”. Além disso, diz ela, o governo Bolsonaro faz um “uso perverso eleitoreiro do programa, com mudança de nome e logomarca”.
Para Renato Balbim, doutor em geografia urbana e especialista em política habitacional, o Casa Verde e Amarela “pega tudo o que existe, já contratado no governo, que é basicamente Minha Casa Minha Vida, e dá um novo nome”.
As diretrizes do programa, na visão dele, “são extremamente genéricas”. “O governo dá uma jogada de marketing e já coloca no bolso tudo o que está contratado, que basicamente é Minha Casa Minha Vida, e chama de Casa Verde e Amarela.”
A mudança da taxa de juros, diz, “é normal”. “É natural porque a Selic [taxa básica de juros da economia] baixou demais”.
Ramos, da FGV, concorda. “O Minha Casa Minha Vida já praticava juros menores que o mercado. Agora a Selic está bastante baixa. Não sei se isso é um discurso, porque há espaço para essa redução”, sugere.
Criado em 2009, o Minha Casa Minha Vida era um programa habitacional focado em famílias de baixa renda, com o objetivo principal de produzir unidades habitacionais. Em outras palavras, fornecer casas para a faixa da população que não consegue acessar moradia sem apoio do governo.
Foi concebido como uma política anticíclica, para combater uma crise econômica usando recursos públicos para ativar a economia. Mas apesar de mobilizar um volume muito grande de recursos em uma velocidade muito alta, há críticas de que o programa nasceu muito mais de uma política econômica do que de uma política urbana ou planejada.
O Minha Casa Minha Vida era separado em faixas de rendas familiares diferentes. Na faixa 1, o limite de renda da família era de R$ 1.800, e o governo oferecia até 90% de subsídio do valor do imóvel — esse dinheiro vinha do Orçamento da União.
As outras faixas, indo até a renda de R$ 9 mil, tinham uma pequena parte paga pelo governo e a maior parte dos recursos vindos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).
A faixa 1 era diferente das outras, e especialistas costumam dizer que havia “um muro” entre elas. Unidades da faixa 1 não faziam parte da lógica de mercado, eram feitas para famílias que não têm capacidade de endividamento. As prefeituras faziam o cadastro das pessoas que precisavam de unidades assim e preenchiam os requisitos, a Caixa comprava as unidades e repassava para as famílias.
“O aspecto positivo fundamental foi que, pela primeira vez, houve um programa de habitação depois de um tempo sem foco específico nisso. Mobilizou grande volume de recurso na produção de unidades — 4,4 milhões de unidades em todas as faixas, sendo que 1,5 milhões para a faixa 1”, diz Ramos, da FGV.
Já as críticas recorrentes ao programa, diz ele, são relacionadas, em primeiro lugar, ao tipo de governança gerado. “O dinheiro era repassado para construtoras, e o município tinha o papel de selecionar famílias beneficiárias, identificando áreas das cidades para foco do desenvolvimento dessas unidades habitacionais”, diz. Com isso, “o prefeito tinha um ganho muito grande”. “Quanto mais, melhor para eles em termos políticos.”
Do lado da prefeitura, o programa exigia o fornecimento de infraestrutura urbana. “Mas essa exigência foi sendo afrouxada. Em dado momento, foi substituído por uma carta de intenção das prefeituras para levar infraestrutura básica, como pavimentação e sistemas de saneamento. Isso abriu espaço para que prefeituras e empresas, que buscavam localizações baseadas nos custos das terras, escolhessem regiões muitos distantes do centro, afastando pessoas e moradores da área de serviço, sem resolver problemas de infraestrutura urbana”, diz ele. Assim, as famílias tinham que lidar com o impacto financeiro dessas piores condições de serviço.
Esse problema, diz ele, foi particularmente crítico para a faixa de baixa renda. Isso porque, segundo Ramos, as construtoras buscavam maximizar seus ganhos, e o que determinava o custo do empreendimento era a localização. “Muitas das unidades foram construídas em áreas remotas, sem desenvolvimento urbano, e dentro de conjuntos enormes”, diz. Há registros de conjuntos de quase 2 mil unidades, quase o tamanho de uma cidade, isoladas das cidades.
“Eu não sou uma das viúvas do Minha Casa Minha Vida”, diz Caio Santo Amore, professor da Faculdade de Urbanismo da USP. “Acho que foi desastroso.”
“Em um país desse tamanho, com tantas diferenças regionais, não se resolve o problema de habitação com um programa, nem construindo unidades. É preciso se adequar às especificidades de cada lugar”, diz ele, referindo-se agora ao novo programa de Bolsonaro.
Nos últimos cinco anos, com restrições orçamentárias, a faixa 1 do Minha Casa Minha Vida foi perdendo espaço. Em 2019, já no governo Bolsonaro, não houve nenhuma contratação para a primeira faixa do programa.
Agora, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogerio Marinho, afirmou que não vai fazer mais contratos de unidades da faixa 1 — agora chamada de grupo 1, com renda familiar de até R$ 2 mil, ao invés de R$ 1.800 — porque ainda há muitas obras em andamento.
“As pessoas nos perguntam: vai reiniciar o faixa 1? Sr. presidente, nós temos ainda quase 200 mil unidades habitacionais em carteira, seria irresponsabilidade da nossa parte iniciar novas unidades habitacionais sem terminar as unidades que estão sendo construídas”, disse Marinho na cerimônia de lançamento do programa.
A faixa 1 continua existindo — como grupo 1 — na Medida Provisória que estabeleceu a Casa Verde e Amarela, mas está, em termos práticos, esvaziada, já que o que importa para a faixa são os recursos do Orçamento.
“A moradia tem tempo de preparação, projeto, construção, e aí você entrega a chave. Para ter uma casa daqui a dois ou três anos, é preciso contratá-la hoje”, diz Evaniza Rodrigues, da União Nacional por Moradia Popular, explicando que a falta de produção de casas agora resultará em hiatos de moradia a longo prazo. “Esse anúncio está comprometendo não só o hoje, mas também o futuro próximo das famílias sem teto.”
Para Rufino, da USP, a diminuição de juros para o Norte e Nordeste vai fazer o programa chegar às regiões “um pouquinho mais”. “Mas tem uma maioria enorme que não está priorizada pelo programa. “, diz ela, referindo-se à antiga faixa 1. “Precisava de subsídio muito maior do que uma redução de taxa de juros. Vai ser muito difícil para essas pessoas. E era o que dava mais legitimidade para o programa.”
“O fato de baixarem a taxa de juros para o Nordeste pode ser interessante, mas resolve pouco porque, na verdade, quando olhamos os números anteriores, o Nordeste havia contratado mais faixa 1.”
Hoje, o Brasil tem um déficit habitacional de 7,757 milhões de moradias, segundo estudo da FGV, com base na Pnad (Pesquisa Nacional Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, de de 2015, o mais recente.
Esse número é composto por famílias com um grande comprometimento da renda com o pagamento de aluguel (famílias de baixa renda, que ganham até 3 salários mínimos e comprometem mais do que 30% da renda com o aluguel), pela coabitação (famílias dividindo o mesmo teto), habitações precárias e o adensamento excessivo (muitas pessoas morando no mesmo lugar).
A maior parte dessas pessoas, diz Evanize, pertenceriam à faixa 1. “O programa Casa Verde e Amarela, então, atenderá a uma parcela muito pequena do que é a falta de moradia do país”, opina.
Sobre a crítica de que o programa pode excluir as pessoas mais pobres, o Ministério do Desenvolvimento Regional respondeu à BBC News Brasil que a medida provisória não excluiu a produção subsidiada de imóveis para as famílias nas faixas de renda mais baixas.
A regularização fundiária é um conjunto de ações feitas para regularizar assentamentos irregulares e dar titulação a seus ocupantes, com o objetivo de garantir o direito social a moradia. Ela permite que uma família se torne proprietária de um imóvel e que, com isso, seja levada infraestrutura aos locais e que empréstimos sejam contraídos em nome do imóvel.
“Sem a regularização, é como se você fosse um cidadão de segunda categoria. Você tem imóvel, mas não tem a posse”, diz Rosane Tierno, advogada urbanista e coordenadora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanísitico.
Hoje, quem arca com a regularização fundiária são as prefeituras. Pela Constituição federal, elas são obrigadas a levar infraestrutura para esses locais. A prefeitura de São Paulo faz isso desde a década de 1970, diz ela, “mas mesmo assim não é o suficiente do grande passivo que temos desde século 19”. Para Tierno, a causa disso “é a falta de planejamento do Estado, que nunca forneceu moradia”.
“É diferente da população de média e alta renda que mora de forma irregular por uma escolha. Dentre opções do mercado, resolveu morar num condomínio fechado para ter nascente só para ele, privatizar a natureza para ele.”
Na medida provisória que cria o Casa Verde e Amarela, porém, a ideia é acelerar o processo de regularização fundiária, permitindo que ela seja feita por empresas — pegando carona em mudanças profundas ao processo de regularização fundiária feitas em uma lei de 2017, durante o governo Temer.
“A medida provisória abre essa brechinha. É uma zona muito cinzenta. O morador vai passar a poder contratar a regularização fundiária para a terra dele, e não será o município quem deverá arcar com isso”, diz Balbim.
“É um projeto que se alinha muito ao governo atual, com uma visão neoliberal. O pensamento é de que ‘aquelas casinhas de pobre’ significam um ativo morto, porque não estão no mercado, não podem ser penhoradas para aquecer a economia”, diz Tierno. “Mas sabemos que isso não aquece a economia.”
Para ela, caso seja levado a cabo, será o mesmo que foi feito no Peru na década de 1970, ideia defendida pelo economista liberal peruano Hernando de Soto. Naquele país, o processo acabou não gerando o resultado econômico que se esperava.
Há empresas que vêm se especializando em fazer essa regularização para a população — com o apelo de que a fila nas prefeituras pode ser grande —, oferecendo cada vez mais esse serviço.
Na visão de Tierno, o perigo disso é que as pessoas acabem perdendo seus imóveis. “Se a pessoa puder pedir um empréstimo e não for ser exigido que dê o imóvel como garantia, beleza. O meu receio é que o banco exija que se dê o imóvel como garantia do financiamento. Com essa retração econômica, se ele não paga, ele vai ser despejado imediatamente”, alerta.
Além disso, questiona, “e se a empresa não conseguir fazer a regularização?”. “Quem vai regular essas empresas? Qual é o mecanismo de regulação?”
Outro perigo, levantado por Balbim, é a da gentrificação, fenômeno em que uma região é modificada e valorizada, afetando e até expulsando a população de baixa renda local.
“De agora em diante, a família poderá se endividar, entrar num financiamento e pagar pela própria regularização”, diz. “Isso pode levar a um processo de gentrificação. As áreas em que o mercado mobiliário tiver interesse de regularizar, pode colocar empresas para chegarem junto dos moradores e oferecerem financiamento para fazer a regularização.”
“A pessoa pobre ocupa a área, faz o esforço de regularização, e quando está tudo certinho, aquilo fica muito caro, vem interesse do mercado, e essa área é captada”, explica.
“É muito difícil pensar em passar uma atribuição dessa importância para um ente privado. Se for uma regularização onerosa, os moradores poderão perder seu lote. Conseguem a documentação, mas perdem a casa”, diz Rodrigues, da União Nacional por Moradia Popular.
E pior: para onde os moradores originais iriam? “Se as empresas comprarem, acabará havendo uma substituição da população original. E ninguém some da face da terra, você vai para áreas vulneráveis ambientalmente, escondidinho de todo mundo”, responde Tierno.
“O fundamento de tudo isso é o seguinte: existe um estoque de recursos que não é titulado, que se titulado e colocada no mercado, iria fazer a economia girar”, diz Balbim. “Mas já foi provado que isso é uma falácia.”
Para Rufino, essa parte da medida provisória “abre caminho para um cenário desastroso”. “É mais uma punhalada de destruir a política pública municipal. É importante você articular a urbanização e a regularização. A lei acelera a regularização, mas sem garantia de qualificação urbanística.”
É uma lógica de “excluir os mais pobres”, opina Santo Amore. “Desvincular a regularização, a emissão de título de posse mais segura, da melhoria urbana de fazer infraestrutura, melhorar os espaços públicos, esgoto, água, é um problema.”
“Para a urbanização, é preciso infraestrutura. Ao substituir um processo de urbanização por um processo de titulação, você melhora a segurança na posse, que é importante, mas você pode desvincular outros aspectos como o saneamento, água adequada, coleta de esgoto, entre outros”, afirma.
À BBC News Brasil, o Ministério de Desenvolvimento Regional afirmou que a “regularização fundiária será custeada por recursos do programa e executada por empresas selecionadas em editais, em conjunto com as prefeituras”.
“Nós vamos apoiar os municípios para que possam fazer seu trabalho. Pela primeira vez em 20 anos, um governo federal se incomoda em fazer um programa de âmbito federal dessa magnitude, de entregar ao cidadão mais humilde o que certamente para ele é o mais importante: a escritura pública de sua residência. Isso é transferência de renda na veia”, disse no anúncio do programa o ministro de Desenvolvimento Regional, Rogerio Marinho.
O programa também inclui a possibilidade de reforma de casas já existentes, o que, na visão de especialistas, se for bem-feito, pode ser uma boa novidade.
Essa era uma reivindicação de parte das pessoas que estudam políticas habitacionais, diz Santo Amore. “O fato de você ter uma política para a reforma de casas é importante e bem pertinente. É algo que já se tentou e aparece aqui e ali na história urbana brasileira.”
“A inadequação de moradias é algo que resolveríamos claramente sem construir novas moradias. É o que se chama de déficit qualitativo. Não é necessário fazer uma casa nova num terreno vazio para solucionar uma casa precária, você pode melhorar a própria casa”, afirma Santo Amore.
“A autoconstrução é predominante no Brasil. É a principal forma de acesso a moradia nesse país. Ocupar espaço em uma favela, construir na laje do parente. É assim que os trabalhadores moram nesse país. Uma política que chegue nessa realidade é importante, e isso dialoga com a lei da regularização fundiária.”
“As famílias vão construindo casas aos poucos: uma parede aqui, um piso que não está terminado”, diz Ramos, da FGV. “Essa pode ser parte da solução habitacional para algumas famílias. Cria resultados que evitam, por exemplo, o deslocamento da família para uma área mais distante.”
Os dois especialistas concordam, no entanto, que é preciso observar como isso será feito, porque é extremamente importante que essa política seja feita com acompanhamento técnico.
Mas não há espaço para debate em um dos que eram os principais espaços para isso. O antigo Conselho Nacional das Cidades, onde havia representação de diversas categorias, como a academia, movimentos sociais, empresários, entidades de classe, sindicatos, estados e municípios, foi esvaziado.
O governo Bolsonaro tentou extinguir o conselho em 2019, com um decreto que tentou extinguir diversos outros colegiados da administração federal com a participação da sociedade civil. Mas o Supremo Tribunal Federal reverteu a decisão.
Dessa forma, diz Rodrigues, da União Nacional por Moradia Popular, “não se tem mecanismos de controle social para as políticas, não temos conferências”. “Isso acaba sendo um problema para conseguirmos avaliar os resultados das políticas.”
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, a medida provisória que institui o Programa Casa Verde e Amarela “possibilitou a realização de audiências públicas, ampliando a participação popular no processo de discussão da política habitacional”. “Para o próximo ano, estão previstas audiências para a revisão do Plano Nacional de Habitação”, disse, em nota, a pasta.
G1